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Saúde 24/11/2008 - 06h33
SÃO PAULO - Caso você seja um paciente com alguma doença incurável, como Mal de Parkinson, Alzheimer ou Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), saiba que existe uma clínica na Holanda que diz que pode ajudá-lo. O catálogo ou website informa que você pode ser curado com uma injeção de células-tronco aplicada embaixo da pele, num procedimento de apenas algumas horas. A clínica já tratou centenas de pessoas e atesta que tem resultados “surpreendentes”, com depoimentos emocionados de seus pacientes. Apesar do foco da clínica holandesa estar nas doenças do sistema nervoso, eles também aceitam pacientes com outras doenças, como artrite, lupus, insônia, disfunção sexual, queda de cabelo e falta de apetite.
Esse é só um exemplo de clínicas que estão oferecendo serviços baseados em células-tronco. Basta uma rápida procura na internet para encontrar centenas de sites, a grande maioria bem atraentes, com retratos de pessoas saudáveis e felizes, ou relatos de paciente atuais que foram “curados” ou tiveram uma melhora significativa. Muitas delas oferecem inclusive um pacote turístico junto, é o chamado turismo terapêutico. O custo varia muito, em geral em torno dos US$ 20 mil. Mesmo assim, existem milhares de pessoas na fila de espera.
Dependendo da clínica, tipos diferentes de células-tronco estão disponíveis. Algumas oferecem tratamentos baseados em células do cordão umbilical, outras usam células retiradas de fetos abortados. Ainda temos células sanguíneas da medula do próprio paciente ou mesmo células glia progenitoras do nariz.
Apesar de milhares de pacientes terem sido tratados por essas clínicas, grande parte da comunidade científica, familiarizada com procedimentos envolvendo células-tronco, repudia esse tipo de serviço. A principal crítica é que não existem evidências suficientes que demonstrem a eficácia das terapias, muito menos trabalhos publicados com modelos animais que sugerem que a técnica possa funcionar em humanos. A grande maioria das clínicas não coleta dados suficientes que permitam uma análise rigorosa e os clínicos não descrevem com detalhes como as cirurgias são realizadas. Fica impossível para quem está de fora tentar entender o que acontece na sala de cirurgia.
Nos EUA, alguns cientistas e grupos de pacientes vêm tentando entrar em contato com clínicas que reportam resultados positivos, na esperança de compreender melhor o procedimento. Infelizmente, esse contato não tem sido produtivo. A grande reclamação está na falta de clareza dos relatórios médicos, mesmo dados básicos sobre a saúde inicial do paciente são deixados de fora.
Apesar de toda a agitação atual em torno das células-tronco, existem apenas algumas terapias legítimas utilizando células-tronco adultas (para algumas leucemias, infarto ou degeneração da córnea) e o primeiro ensaio clínico usando células-tronco embrionárias para lesões da medula espinhal deve acontecer em breve na Califórnia. É só. A grande parte dos pesquisadores ainda está tentando entender como as células-tronco se comportam no organismo, quais as conseqüências do transplante e se elas realmente fazem algum efeito.
Mas as clínicas particulares estão oferecendo cada vez mais serviços, ampliando o espectro de células e tipos de doenças. Por exemplo, a EMCell, clínica que diz já ter tratado mais de 2.000 pacientes para as mais diversas doenças, anunciou que um paciente com ELA voltou a andar. O caso chamou a atenção de uma associação de ELA americana (ALSTDF), que decidiu investigar o caso, na esperança de que seus membros também possam usufruir dessa terapia. Em conversa com os médicos da EMCell, os diretores da ALSTDF não conseguiram detalhes clínicos suficientes para compreender como o procedimento é realizado. Pior, algumas das declarações levantaram suspeitas, como, por exemplo, a injeção de células-tronco foi abdominal. Salvo uma reação imunológica temporária, não existe nenhuma evidência de que células na cavidade abdominal contribuam para uma melhora do sistema nervoso. É implausível que as células migrem para o cérebro e contribuam na melhora da ELA.
O caso ficou conhecido pela mídia e chamou a atenção da revista científica “Science”, que procurou os diretores da EMCell para uma explicação. Os poucos trabalhos foram publicados em revistas de baixo impacto (sem indexação internacional) e a maior parte em russo. Os coordenadores da EMCell justificam que a comunidade internacional, principalmente dos EUA, simplesmente ignora os resultados positivos que a clínica vem obtendo, seja por motivos intelectuais ou financeiros.
Outro caso interessante é o da instituição chinesa comandada pelo Dr. Huang. O procedimento é baseado na descoberta do neurocientista Geoffrey Rasiman (University College London) que descobriu, mais de 20 anos atrás, que certas células da mucosa nasal são responsáveis por guiar fibras nervosas do bulbo olfatório até o cérebro. Quando em cultura, Raisman e outros grupos demonstraram que essas células podem ser usadas para melhorar os sintomas de ratos com lesões na medula espinhal. No website chinês, os pacientes se referem a essas células como “células-tronco”, mas Huang nega que sejam realmente células-tronco.
O grupo de Raisman está coordenando um pequeno ensaio clínico com humanos baseado na sua descoberta. Mas o procedimento da clínica chinesa é diferente. Lá eles retiram as células de fetos abortados e injetam diretamente no paciente. Dados experimentais em cobaias sugerem que as células são atacadas pelo sistema imune rapidamente, pois há incompatibilidade imunológica, sendo eliminadas do corpo. Portanto, não existe base científica alguma para a melhoria observada nos pacientes de Huang.
Mesmo assim, diversos cientistas liderados por um grupo de Miami se mostraram intrigados pelos resultados e conseguiram permissão para acompanhar a avaliação clínica dos pacientes de Huang. Os dados, publicados na revista “Neurorehabilitation and Neural Repair” e na “Spinal Cord”, são assustadores. De sete pacientes autorizados a ter contato com cientistas do exterior, cinco apresentaram efeitos colaterais (incluindo meningite e exacerbada sensibilidade) e nenhum mostrou qualquer sinal de melhora. Para piorar, as amostras injetadas não continham as tais células-tronco do nariz. Obviamente Huang se defendeu criticando a técnica dos cientistas de Miami e apontando que a análise de apenas sete entre milhares de pacientes seria insuficiente para tirar conclusões. Justo, mas porque isso não foi discutido antes?
Hoje em dia, o ideal é que qualquer terapia em humanos seja testada em ensaios experimentais abertos, “randomizados” e controlados, onde qualquer pesquisador do mundo possa ter acesso aos dados. Os pacientes devem participar sem pagar absolutamente nada, estando cientes dos riscos envolvidos. Obviamente, nos países em desenvolvimento, onde as regulações institucionais são menos rigorosas, isso acontece mais freqüentemente. Mesmo assim, nos EUA, uma clínica de Atlanta (Biomark) foi processada pelo FDA (agência governamental americana responsável por fiscalizar tratamentos clínicos) por ludibriar seus pacientes com falsas esperanças no tratamento de ELA usando células do cordão umbilical. Após perder os direitos de clinicar nos EUA, os donos da clínica são agora procurados pelo FBI.
Mesmo assim, muitos pacientes continuam a procurar esse tipo de auxilio. Com justificativas do tipo “não me importa se ainda não foi provado cientificamente” ou “qualquer melhoria pra mim é bem vinda”, ou mesmo “não tenho nada a perder”, fica difícil de argumentar com pacientes que têm pressa na cura. A razão por trás disso inclui a divulgação exacerbada dos avanços das células-tronco pelos próprios cientistas e pela mídia em geral. Caso semelhante aconteceu na década de 80 com a “terapia gênica”. Com a morte de um voluntário, as pesquisas da área desapareceram por anos por falta de financiamento e só estão voltando agora. Um atraso científico e terapêutico irreparável. Será que já não teríamos a cura para diversas doenças se os avanços não tivessem sido interrompidos?
A esperança nas células-tronco é compartilhada por muitos, pacientes, familiares, pesquisadores, políticos. Infelizmente ainda não chegamos lá. Precisa-se investir muito em pesquisa básica. Ensaios experimentais clínicos devem ser controlados e sem retorno financeiro, garantindo a transparência. Sei que é difícil explicar isso para pacientes que se recusam a se conformar com seu estado. Mas acho que essa deva ser outra razão para que se pressione as agências de fomento governamentais a investir na área ou mesmo para organização de associações privadas, comandadas ou não por pacientes, que financiem pesquisas direcionadas para doenças específicas.